“Palavras existem em contextos; é nos contextos que elas fazem sentido, que apelam para a nossa imaginação, mobilizam nossas emoções, ensinam-nos coisas que não sabíamos”, diz o médico e escritor Moacyr Scliar
Por Moacyr Scliar*Em 1959, o cientista e escritor britânico Charles Pierce Snow ministrou uma conferência na Universidade de Cambridge, Inglaterra, que levava o título de The Two Cultures - As Duas Culturas. A palestra teve enorme repercussão; acabou sendo publicada em livro que fez sucesso no mundo todo. É que, talvez sem o querer, Snow havia detectado um problema que é cada vez mais atual: o fosso existente entre as chamadas duas culturas da contemporaneidade. Diz Snow: “intelectuais e literatos de um lado, cientistas de outro: entre os dois lados um abismo de mútua incompreensão, às vezes até de hostilidade. Cada lado tem uma imagem distorcida do outro. Os não-cientistas tendem a pensar nos cientistas como seres arrogantes, otimistas ingênuos, ignorantes da condição humana. Os cientistas acham que escritores e intelectuais não têm qualquer visão do futuro, que não estão preocupados com seres humanos.” E exemplifica: “muitas vezes estive presente em eventos de pessoas consideradas cultas; com deleite, demonstravam seu assombro diante da ignorância de muitos cientistas. Provocado, uma ou duas vezes perguntei-lhes quantos deles conheciam a segunda lei da termodinâmica; obtive respostas negativas e hostis. No entanto, minha indagação equivalia, do ponto de vista científico, a perguntar: você já leu alguma obra de Shakespeare?” Ou, podemos acrescentar, uma obra de Machado de Assis, de Mário de Andrade, de Clarice Lispector? Não tenho tempo para isso, responderão muitos profissionais da área técnica-científica, uma desculpa frequentemente esfarrapada. Mas tal situação está, felizmente, mudando.
Tomem como exemplo a medicina. No início da modernidade, esta era uma profissão praticada por gente culta; os médicos não raro eram também filósofos. Mas isso resultava do fato de que, conhecendo muito pouco do organismo e de suas doenças, eram forçados a recorrer às especulações das mais variadas. Na medida em que foram surgindo dispositivos como o microscópio, o eletrocardiógrafo, o aparelho de Raios X, e na medida em que a indústria começou a produzir medicamentos capazes de curar doenças, a visão tecnológica e científica foi se afirmando. A medicina diagnosticava cada vez melhor, curava cada vez mais. Mas houve um preço a pagar. Muitos pacientes queixam-se de que a dimensão humana do atendimento, expressa nas longas conversas do passado, se reduziu; e também surgiram problemas no processo de comunicação entre médicos e pacientes. Em recente levantamento realizado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) em nosso país, verificou-se que, no norte do Brasil, 64% dos entrevistados têm dificuldades para entender a linguagem utilizada pelos profissionais da saúde. Por outro lado, os técnicos encontram problemas também na comunicação com o público em geral quando são solicitados, por exemplo, a escrever um texto ou a dar uma entrevista para a mídia em geral.
Como resolver essas questões? As universidades têm tomado algumas interessantes iniciativas. No caso da medicina, surgiu um conjunto de disciplinas conhecido como humanidades médicas, que abrangem História da Medicina, Antropologia Médica, Ética Médica, Comunicação em Saúde, Literatura e Medicina, já introduzidas em muitas universidades do país e do exterior. Mas, ainda que a pessoa não passe por um treinamento formal, há uma maneira de desenvolver o lado humanístico que existe em qualquer profissão e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a capacidade de comunicação oral e escrita. Esta maneira é a leitura.
Muitas coisas acontecem quando estamos lendo um livro. Em primeiro lugar, estamos diante de palavras, algumas conhecidas (mas usadas de maneira original), outras desconhecidas; em ambos os casos a experiência nos é extremamente benéfica. A melhor maneira de ampliar o nosso repertório vocabular é exatamente através dos livros, sobretudo aqueles escritos por mestres da palavra. Claro, poderíamos pegar um dicionário e tentar memorizá-lo; mas isso, em primeiro lugar, seria muito chato e certamente não daria bom resultado. Palavras existem em contextos; é nos contextos que elas fazem sentido, que apelam para a nossa imaginação, mobilizam nossas emoções, ensinam-nos coisas que não sabíamos. Assim como o cérebro funciona mediante a conexão entre células nervosas e a psicanálise mediante a associação de idéias, as palavras buscam umas às outras - um processo que os escritores facilitam com a imaginação e o domínio da técnica literária. Essa técnica, em maior ou menor grau, está ao alcance de todo o mundo; todos nós podemos nos comunicar pelo texto escrito (e cada vez nós o fazemos mais pela internet).
Mas a literatura não é só isso. A literatura também é uma experiência poderosa, tanto a ficcional como a não ficcional. No primeiro caso nós nos identificamos com personagens e mergulhamos fundo na condição humana. Quem quer saber o que é sentir ciúmes deve ler “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. E a literatura de ideias nos informa e nos ensina a pensar.
Não é de estranhar, portanto, que a leitura seja uma das grandes coisas da vida, um hábito que passa a ser indispensável. Ler é viver. Viver de maneira muito melhor, mais intensa e mais generosa.
* Moacyr Scliar é escritor, autor de 80 obras em diversos gêneros; traduzido em numerosos países, recebeu vários prêmios literários, incluindo o Jabuti de 2009 para melhor livro de ficção. É médico e membro da Academia Brasileira de Letras.
Fonte: http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/504/a-leitura-como-experi-ncia-humana.html
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